23 julho 2025

RCT - FILOCTETES EM LENNOS

Semanas atrás, fui assistir a Filoctetes em Lennos, espetáculo concebido por Vinícius Torres Machado e dirigido por Marina Tranjan, em cartaz no Sesc Pompeia.

Foi, sem dúvida, uma das experiências mais impactantes que já vivi no teatro.

Este texto não é uma crítica formal, tampouco uma divulgação da peça. É um compartilhar. Um exercício de eco e escuta — daquilo que reverberou em mim.

 

🟡 O CORPO QUE NÃO CABE NA GUERRA

A peça parte da narrativa do herói grego Filoctetes, abandonado pelos companheiros a caminho de Tróia. A razão do abandono? Uma ferida aberta que não cicatrizava, o cheiro da carne em decomposição e os gritos incessantes de dor.

Durante nove anos, Filoctetes habita sozinho a ilha de Lemnos. Ele se torna, antes de tudo, o corpo que incomoda. Que atrapalha. Que fede. Que sangra. Um corpo que a guerra não tolera.

 

🟡 VINÍCIUS E FILOCTETES: A ENCARNAÇÃO DA DOR

A encenação se concentra nesse tempo do exílio. Mas o que torna a obra ainda mais contundente é o cruzamento entre o mito e a biografia do próprio Vinícius, que pela primeira vez se coloca em cena como performer.

Vinícius é diretor e pesquisador, e seu corpo carrega as marcas de um tratamento longo e violento contra um câncer agressivo. Há vinte anos, convive com uma ferida que não cicatriza. Ele não interpreta a dor — ele é a dor. Uma dor não encenada, mas atravessada. Crua. Matéria viva.

A peça expõe a fragilidade da vida, sua potência e seu abismo.

 

🟡 O VAZIO COMO CENA

O início é árido, e não por acaso. Filoctetes está sentado à extremidade de uma mesa. A cena se sustenta em silêncio. Pode-se imaginar que ele espera alguém. Mas não há ninguém. Nenhuma outra cadeira. Nenhuma promessa.

Ele não espera. Ele apenas está.

E o desconforto que sentimos vem da ausência de estímulos. Não há “isca” para o espectador. Nenhuma tentativa de agradar. O que vemos não é um personagem em ação — é o nosso tempo sendo desprogramado.

Aos poucos, percebemos que a cena não é sobre um homem isolado em uma ilha. É sobre nós — irmanados na mais íntima das solidões. Aquela que não emerge apenas na ausência de companhia, mas na exposição radical da existência.

 

🟡 O SILÊNCIO COMO CORAGEM

Durante todo o espetáculo, Vinícius não diz uma palavra. Não verbaliza, não oraliza. E mesmo assim, tanto é dito.

Filoctetes em Lennos é um ato de coragem. O silêncio sustentado cria um espaço raro para que o espectador frua com densidade. Há tempo. Tempo para contemplar. Para decantar. Para sentir.

Vivemos uma época de urgência e saturação. Na chamada “economia da atenção”, o que está em disputa, na verdade, é nosso tempo. Nosso tempo de vida. E, como o teatro está no mundo, muitos espetáculos acabam se convertendo em discursos apressados, carregados de palavras que pouco dizem, estéreis mesmo. Sem pausa. Sem contradição. Sem silêncio.

Este espetáculo nos devolve um tempo desacelerado. Um tempo outro. Um tempo que permite o surgimento da interioridade.

 

🟡 UM PEQUENO MILAGRE

Filoctetes em Lennos é, talvez, um pequeno milagre. Não pelo tamanho,, mas pela escuta que propõe. Pela reverência ao mistério da existência. E de que isso não pode ser perturbado.

A peça retorna em cartaz em setembro, no TUSP.

Vá.

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