09 abril 2025

ESET - QUE TIPO DE EDUCADOR VOCÊ QUER SER?


“Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para”
Lenine

 

ENQUANTO O TEMPO ACELERA E PEDE PRESSA...             

Em dezembro de 2006, Viviane Mosé, filósofa, psicóloga e poeta, participou de um Café Filosófico cujo tema era “Desafios da Educação Brasileira”.
Em certo momento, ela provoca a plateia ao afirmar que ninguém necessita de mais professores de Filosofia ou Matemática, e sim de educadores comprometidos mais com os alunos do que com suas matérias. Para ela, o saber só tem significado quando vinculado à realidade concreta. Nada possui sentido isoladamente, e qualquer conhecimento dissociado da vida mesmo é vazio.

Quem nunca questionou, durante o período de formação básica escolar, a razão de aprender certos conteúdos? Muitas vezes, parecia não haver relação entre o que era ensinado e nossa existência naquele momento — ou mesmo com o futuro que nos aguardava. Embora essa indagação carregasse um viés utilitarista, também é verdade que frequentemente havia uma desconexão entre o aprendizado formal e nosso cotidiano.

Nessa conferência, Mosé também afirma que ninguém deveria ocupar-se em ser professor disso ou daquilo, mas sim professor de aluno. Quer dizer, é no encontro com o outro que o aprendizado deveria estar centralizado, e não no conteúdo. O que o ensino do teatro pode auxiliar a refletir sobre uma experiência de conhecimento que se dá a partir dessa ideia de encontro?

Numa sociedade capitalista, em que  tudo se converte em mercadoria, as pessoas são reduzidas a público-alvo, consumidores, clientes — nunca cidadãos. Essa lógica impregnou de tal forma nossa subjetividade que quase nada escapa à máquina de precificação: nossa forma de amar, de viver a sexualidade, de buscar diversão, de cuidar do corpo, de nos alimentar,, de escolher uma carreira, de estudar — tudo é transformado em produto e revendido a nós mesmos. Somos incapazes de ver, ouvir, cheirar, tocar, mexer, falar, de andar, de imaginar, até de sonhar sem referência aos significantes que nos dominam.

A própria noção de EXPERIÊNCIA foi fagocitada por essa engrenagem, empacotada como algo que se compra.

 

ATÉ QUANDO O CORPO PEDE UM POUCO MAIS DE ALMA...

Mesmo nas escolas onde se ensina teatro, essa concepção de experiência é frequentemente engolida por uma dinâmica que exige a montagem de espetáculos em cerca de 30 aulas, apresentados ao público sem o tempo necessário para amadurecimento artístico. Quando a relação com essas instituições ainda é mediada pelo dinheiro — no caso das escolas particulares —, parece haver uma pressão de pais/alunos clientes por resultados tangíveis. As peças são exibidas precocemente, ainda imaturas — não necessariamente por responsabilidade dos profissionais que conduzem os processos criativos, mas por conta dos limites institucionais que se impõem sobre a sala de aula.

Questiono: esse ritmo permite que os alunos sejam transformados pelo processo, e não esmagados por ele? Quem se beneficia?

Quem lucra com o fetiche das “apresentações de fim de ano” em escolas regulares, que deixam docentes de artes em desespero, já que aquela exibição será usada também para avaliar sua competência?

Obviamente, reconheço a relevância de apresentar um trabalho ao público — sem isso, o teatro não se completa. Minha consideração dirige-se à linha de produção de espetáculos, que movimenta a economia de certos centros de ensino.

Quando bell hooks, escritora, teórica feminista e ativista, descreve em Ensinar como prática libertadora sua trajetória em escolas para crianças negras durante a segregação racial nos EUA, ela fala de um espaço onde podia se reinventar por meio de novas ideias. Quanto tempo uma ideia precisa para florescer no espírito de alguém? Um dia? Um ano? Uma vida? É impossível medir. Por isso, talvez, a aprendizagem artística devesse seguir seu próprio ritmo.

 

EU ME RECUSO, FAÇO HORA E VOU NA VALSA...

 Iniciativas como a Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT) resistem a essa lógica. Fundada em 1990, a ELT é um marco na formação teatral pública e gratuita no Brasil. Criada sob a gestão de Celso Daniel, inspira-se no teatro de grupo e rejeita hierarquias rígidas. Sem currículo fixo, seu projeto pedagógico adapta-se a cada turma, privilegiando a experimentação. Ao longo do curso, compartilham-se os processos — os chamados working in progress — com a comunidade, e apenas no final de quatro anos surge um espetáculo, que levará pouco mais de um ano para ser levado a público.

Minha primeira formação como artista foi na ELT. Um dos traços mais marcantes era o tempo concedido para cada projeto. Em três anos, além da peça final, minha turma realizou três exercícios cênicos — cada um exigiu cerca de um ano de investigação. Não se trata de definir prazos ideais, mas de ilustrar uma experiência que valoriza o processo, onde o aprendizado flui de maneira mais orgânica e, talvez por isso mesmo, um pouco mais lenta, permitindo aos aprendizes um tempo de decantação dos aprendizados, sem a pressão do resultado, de chegar a um “espetáculo final”. Ao término, não há diplomas: cada artista leva consigo o conhecimento que seu corpo deu conta de acolher. É mais sobre aprender a aprender, sobre a construção de uma postura em relação ao fazer artístico.

Considero o projeto pedagógico da ELT uma alternativa, não um modelo a ser seguido. É, sem dúvida, uma resposta corajosa aos modelos de escolas de teatro mais convencionais. Mas não é o único.

 

SERÁ QUE É TEMPO QUE NOS FALTA PRA PERCEBER?...

Em seu livro, hooks defende que uma educação como prática da liberdade seja capaz de desmontar os mecanismos de dominação que atuam sobre determinada sociedade. Se o capital opera na lógica do “tempo é dinheiro”, o ensino do teatro não deveria operar na lógica do “tempo é arte”? Não estaria o tempo kronos — o tempo da lógica corporativista, o tempo do “nós lucramos enquanto eles dormem” — dominando nossos modos de criação?

Atualmente é dificílimo que espaços públicos acolham temporadas teatrais com mais do que 12 sessões. Quase impossível, eu diria. Instituições como o Sesc — que, em São Paulo, possui orçamento semelhante ao do Governo do Estado (cerca de 1 bilhão e 1,2 bilhão, respectivamente) —, via de regra, não contratam espetáculos já estreados. A cada seis meses, centenas de montagens estudantis entram em cartaz por não mais do que um final de semana nas escolas de teatro. Nossa sociedade está lidando com o teatro como quem rola o feed do Instagram. Tem muita coisa sendo produzida, mas o que de fato fica? O que de fato nos toca? O que nos atravessa realmente?

O que esses exemplos nos dizem é que há uma demanda por rotatividade, que há um imperativo por novidade e que existe um funcionamento ordenado pela produtividade. Como uma educação que se pretende libertadora será possível se não romper com esse funcionamento operante?

O desafio que temos é conseguir que o teatro cumpra sua vocação de ENCONTRO com o outro. Na realidade de quem vive na maior cidade da América Latina e centro econômico do Brasil, atesto que há uma gigantesca produção teatral e dezenas de centros de ensino, se compararmos com outras cidades do país. Mas, voltando a Viviane Mosé — que abriu essa reflexão — e a bell hooks: é de mais peças de teatro que precisamos? De que teatro estamos falando? É do teatro que precisamos ou do encontro que essa arte nos possibilita: o encontro com o outro, consigo mesmo, com o mundo, com o não imaginado, com o impossível?

Na música “Paciência”, do artista pernambucano Lenine — que inspirou os subtítulos dessa reflexão —, somos gentilmente suspensos da dinâmica acelerada de nossas existências sem tempo para lembrarmos que a vida é tão rara.

 

O mundo vai girando cada vez mais veloz

A gente espera do mundo

E o mundo espera de nós

A vida é tão rara

 

A vida é tão rara...

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