O BEIJO NO ASFALTO
A peça selecionada foi O beijo no asfalto
(1961), de Nelson
Rodrigues. O trecho apresentado é uma adaptação da
primeira cena do terceiro ato. Na cena, Selminha é interrogada pelo delegado
Cunha e pelo repórter Amado sobre o paradeiro de Arandir, personagem central da
narrativa, que vê sua vida virada de cabeça para baixo após ter dado um beijo em
um homem moribundo na rua.
Hipocrisia, moralismo e manipulação da verdade são os fios condutores de uma
narrativa que espelha o Brasil de 2024. O
recrudescimento de uma moral conservadora evangélica neopentecostal, sempre
empenhada em vigiar e controlar os
corpos, e onde a mentira, o sensacionalismo, o clickbaite e o like são
utilizados como armas de disputa pela atenção,
faz com que o texto de Nelson pareça ter sido escrito para os dias de
hoje.
As escolhas feitas para este exercício cênico tinham como
principal objetivo destacar a tensão à qual as personagens estão sujeitas, tais
como: o corte no texto original que concentrou ainda mais as ideias em torno do
tema que desejávamos enfatizar; a eliminação de algumas derivações das falas
das personagens, para criar condições mais favoráveis de compreensão para os
atores sobre o estado em que as personagens se encontram na cena; os silêncios; as relações de poder que se revelam na postura corporal dos atores e na dinâmica espacial estabelecida entre
eles e com os enquadramentos da câmera; a escolha de um plano sequência que
constrói uma linha constantemente esticada, não permitindo ao espectador relaxar,
e possibilitando aos atores
que vivenciem uma linha contínua de ação; a baixa iluminação, a escolha de um
espaço minúsculo e sem janelas para criar uma atmosfera claustrofóbica e “sem saída”,
e a incorporação dos sons ambientes. Todos
esses elementos contribuíram para a composição de uma cena que intensificasse
o clima presente em O
beijo no asfalto.
“Fazer essa cena de O beijo no asfalto foi muito legal e rico no sentido de o contexto histórico contar sobre o jogo midiático da época e que, agora, só é mais exacerbado. Entender como um beijo pode afetar todo o universo daquelas pessoas [as personagens] que estavam em cena...”Pedro Dantas Aluno do 2MA
SOBRE A INSPIRAÇÃO PARA O TRABALHO
A inspiração para o desenvolvimento deste experimento foi o
Teatro de Arena. O grupo surgiu em 1953 com o desejo de criar uma teatralidade que respondesse
às questões sociais e políticas brasileiras, interferindo na realidade de forma
mais direta. Nesse sentido, a escolha de O beijo no asfalto responderia
perfeitamente a essa perspectiva se encenada naquela época pelo grupo e mesmo
nos dias atuais, pois os temas abordados na peça continuam assustadoramente
presentes em nossa sociedade. Sabe-se que o palco em formato de arena, com o
público ao redor e muito próximo dos atores, revolucionou a interação entre
palco e plateia, materializando o desejo de uma aproximação do teatro com o chão da realidade
das pessoas comuns.
No Arena, as peças não eram
mais organizadas com a distância imposta pela quarta parede. O público podia
enxergar-se naquilo que era
representado pelos atores no palco e também reconhecer-se em outro espectador
do outro lado do teatro. A No nosso exercício, a escolha por utilizar uma
câmera na mão, que acompanha a ação de dentro
da cena, foi uma
solução encontrada para traduzir
para o vídeo a proposta
ética e estética que o Arena adotou da proximidade física com o público dada pela arquitetura do espaço. Um espaço
que permitia ao espectador uma experiência quase de dentro da cena também.
No Arena, havia também uma busca por uma linguagem nacional
e popular, o que contribuiu para a formação de dramaturgos e atores atentos a
essa lacuna no teatro da época. De certa forma, no entanto, Nelson Rodrigues já
havia respondido a essa necessidade desde
suas primeiras obras. Ele foi
um escritor,
dramaturgo, jornalista e cronista, considerado responsável por uma revolução no teatro brasileiro com Vestido de Noiva (1943), dirigida por Zbigniew Marian Ziembińsk, com o grupo carioca Os Comediantes. Como
jornalista, atuou como cronista esportivo e colunista, escrevendo textos muitas
vezes ácidos e irreverentes sobre a
sociedade brasileira. Escreveu também romances e contos que exploravam o comportamento humano e suas inevitáveis contradições. Mas Nelson era apenas um. O teatro da metade do século XX
ansiava por criar uma multiplicidade de vozes que pudessem
retratar um país tão vasto e diverso
como o nosso.
“Gostei muito de fazer O beijo no asfalto,
porque eu acredito
que certos assuntos ainda são
muito pertinentes hoje em dia, sabe? Abuso de poder da polícia, o assédio da
mídia, a homofobia e perseguição de pessoas [consideradas] fracas, digamos,
tudo isso ainda acontece e é incrível que a gente possa trazer isso pro
nosso trabalho, a gente poder
jogar uma luz nessas
coisas que aconteciam antes e acontecem agora... assuntos que estão ainda muito
vivos no Brasil, mas que não vejo muito no palco, sabe? Eu acho que o Nelson
com esta peça dá essa oportunidade pra gente escrachar, como diria o delegado
Cunha. Essa cena que a gente escolheu escracha muita coisa e eu acredito que
movimentos teatrais como o Teatro de Arena tinham esse propósito de trazer esses assuntos brasileiros pro
palco, e de uma forma brasileira, com as gírias e o jeito de falar, o jeito
de agir e a postura
[corporal]....
Tudo isso tá na nossa cena. E tudo isso tá na peça.”
De que é feito um artista? Se existisse uma lista de
qualidades fundamentais para constituição de um artista, o que estaria escrito
nela? Excelência técnica? Intuição, visceralidade e abordagem de temas
relevantes? Criatividade, inventividade, frescor? Estudo e conhecimento
teóricos? Certamente todos esses elementos são capazes de contribuir para a formação
de um artista de
inquestionável potencial. Mas é possível que uma
qualidade subjaça a todas as citadas acima: a porosidade do espírito, uma
sensibilidade hábil em ler o tempo
que se vive e a disposição para reagir, inventar,
imaginar o que até ali foi impossível. Paulo Arantes, professor do Departamento
de Filosofia da USP, diz que “vivemos em tempos de expectativas decrescentes”,
tempos em que a brutalidade devora nossa capacidade de conjugar o verbo utopia.
Sim, utopia é verbo. Porque pensamento é verbo, imaginação é verbo, é ação. Imaginar
é agir sobre o mundo sob a
perspectiva do sonho, do delírio. Imaginar é agir sob uma ordem que opera com
lógicas que não estão condicionadas às limitações impostas pelos discursos do
coach, das religiões hegemônicas, das estruturas de pensamento que constituem uma cultura. Imaginar rasga o véu da realidade imposta e cria as condições, a possibilidade de que
um mundo melhor nasça. Senão melhor, pelo menos um outro que não este.
Uma velha anedota diz que em um prato onde encontra-se um
ovo frito e um pedaço de bacon, a galinha está apenas envolvida
no assunto. O porco, porém,
está intimamente comprometido. Isso é inspirador: o Arena comprometeu-se com a realidade sócio,
política de seu tempo e criou poesia,
imaginou um mundo, criou inclusive um terreno fértil
para o surgimento de fazer teatral novo, a partir da perspectiva dos oprimidos do mundo, que é o Teatro do Oprimido, do Augusto
Boal.
E é bonito e muito inspirador que mesmo tendo encerrado
suas atividades, o Arena segue atuando. Segue atuando aqui, enquanto este texto
é escrito, enquanto olhamos para o passado e somos encorajados a sonhar um futuro. Melhor? Não sabemos. Mas outro, pelo menos, outro.
FICHA TÉCNICA
Texto: O beijo no asfalto
Autor: Nelson Rodrigues
Adaptação do texto e Orientação da direção: Kenan Bernardes
Atores-criadores: Diego Macedo (Cunha),
Kamila Araújo (Selminha) e Pedro Dantas (Amado)
Trabalho apresentado para a disciplina de História do Teatro Brasileiro I, ministrada por Manoel Candeias na Escola Superior de Artes Célia Helena - Licenciatura em Teatro.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial