16 outubro 2024

O BEIJO NO ASFALTO


A peça selecionada foi O beijo no asfalto (1961), de Nelson Rodrigues. O trecho apresentado é uma adaptação da primeira cena do terceiro ato. Na cena, Selminha é interrogada pelo delegado Cunha e pelo repórter Amado sobre o paradeiro de Arandir, personagem central da narrativa, que vê sua vida virada de cabeça para baixo após ter dado um beijo em um homem moribundo na rua. Hipocrisia, moralismo e manipulação da verdade são os fios condutores de uma narrativa que espelha o Brasil de 2024. O recrudescimento de uma moral conservadora evangélica neopentecostal, sempre empenhada em vigiar e controlar os corpos, e onde a mentira, o sensacionalismo, o clickbaite e o like são utilizados como armas de disputa pela atenção, faz com que o texto de Nelson pareça ter sido escrito para os dias de hoje.


As escolhas feitas para este exercício cênico tinham como principal objetivo destacar a tensão à qual as personagens estão sujeitas, tais como: o corte no texto original que concentrou ainda mais as ideias em torno do tema que desejávamos enfatizar; a eliminação de algumas derivações das falas das personagens, para criar condições mais favoráveis de compreensão para os atores sobre o estado em que as personagens se encontram na cena; os silêncios; as relações de poder que se revelam na postura corporal dos atores e na dinâmica espacial estabelecida entre eles e com os enquadramentos da câmera; a escolha de um plano sequência que constrói uma linha constantemente esticada, não permitindo ao espectador relaxar, e possibilitando aos atores que vivenciem uma linha contínua de ação; a baixa iluminação, a escolha de um espaço minúsculo e sem janelas para criar uma atmosfera claustrofóbica e “sem saída”, e a incorporação dos sons ambientes. Todos esses elementos contribuíram para a composição de uma cena que intensificasse o clima presente em O beijo no asfalto.


Fazer essa cena de O beijo no asfalto foi muito legal e rico no sentido de o contexto histórico contar sobre o jogo midiático da época e que, agora, é mais exacerbado. Entender como um beijo pode afetar todo o universo daquelas pessoas [as personagens] que estavam em cena...Pedro Dantas Aluno do 2MA

 

 

SOBRE A INSPIRAÇÃO PARA O TRABALHO

A inspiração para o desenvolvimento deste experimento foi o Teatro de Arena. O grupo surgiu em 1953 com o desejo de criar uma teatralidade que respondesse às questões sociais e políticas brasileiras, interferindo na realidade de forma mais direta. Nesse sentido, a escolha de O beijo no asfalto responderia perfeitamente a essa perspectiva se encenada naquela época pelo grupo e mesmo nos dias atuais, pois os temas abordados na peça continuam assustadoramente presentes em nossa sociedade. Sabe-se que o palco em formato de arena, com o público ao redor e muito próximo dos atores, revolucionou a interação entre palco e plateia, materializando o desejo de uma aproximação do teatro com o chão da realidade das pessoas comuns. No Arena, as peças não eram mais organizadas com a distância imposta pela quarta parede. O público podia enxergar-se naquilo que era representado pelos atores no palco e também reconhecer-se em outro espectador do outro lado do teatro. A No nosso exercício, a escolha por utilizar uma câmera na mão, que acompanha a ação de dentro da cena, foi uma solução encontrada para traduzir para o vídeo a proposta ética e estética que o Arena adotou da proximidade física com o público dada pela arquitetura do espaço. Um espaço que permitia ao espectador uma experiência quase de dentro da cena também.


No Arena, havia também uma busca por uma linguagem nacional e popular, o que contribuiu para a formação de dramaturgos e atores atentos a essa lacuna no teatro da época. De certa forma, no entanto, Nelson Rodrigues já havia respondido a essa necessidade desde suas primeiras obras. Ele foi um escritor,


dramaturgo, jornalista e cronista, considerado responsável por uma revolução no teatro brasileiro com Vestido de Noiva (1943), dirigida por Zbigniew Marian Ziembińsk, com o grupo carioca Os Comediantes. Como jornalista, atuou como cronista esportivo e colunista, escrevendo textos muitas vezes ácidos e irreverentes sobre a sociedade brasileira. Escreveu também romances e contos que exploravam o comportamento humano e suas inevitáveis contradições. Mas Nelson era apenas um. O teatro da metade do século XX ansiava por criar uma multiplicidade de vozes que pudessem retratar um país tão vasto e diverso como o nosso.

 

“Gostei muito de fazer O beijo no asfalto, porque eu acredito que certos assuntos ainda são muito pertinentes hoje em dia, sabe? Abuso de poder da polícia, o assédio da mídia, a homofobia e perseguição de pessoas [consideradas] fracas, digamos, tudo isso ainda acontece e é incrível que a gente possa trazer isso pro nosso trabalho, a gente poder jogar uma luz nessas coisas que aconteciam antes e acontecem agora... assuntos que estão ainda muito vivos no Brasil, mas que não vejo muito no palco, sabe? Eu acho que o Nelson com esta peça dá essa oportunidade pra gente escrachar, como diria o delegado Cunha. Essa cena que a gente escolheu escracha muita coisa e eu acredito que movimentos teatrais como o Teatro de Arena tinham esse propósito de trazer esses assuntos brasileiros pro palco, e de uma forma brasileira, com as gírias e o jeito de falar, o jeito de agir e a postura [corporal]....

Tudo isso na nossa cena. E tudo isso na peça.”

 Kamila Araújo Alina do 2LM

 

De que é feito um artista? Se existisse uma lista de qualidades fundamentais para constituição de um artista, o que estaria escrito nela? Excelência técnica? Intuição, visceralidade e abordagem de temas relevantes? Criatividade, inventividade, frescor? Estudo e conhecimento teóricos? Certamente todos esses elementos são capazes de contribuir para a formação de um artista de


inquestionável potencial. Mas é possível que uma qualidade subjaça a todas as citadas acima: a porosidade do espírito, uma sensibilidade hábil em ler o tempo que se vive e a disposição para reagir, inventar, imaginar o que até ali foi impossível. Paulo Arantes, professor do Departamento de Filosofia da USP, diz que “vivemos em tempos de expectativas decrescentes”, tempos em que a brutalidade devora nossa capacidade de conjugar o verbo utopia. Sim, utopia é verbo. Porque pensamento é verbo, imaginação é verbo, é ação. Imaginar é agir sobre o mundo sob a perspectiva do sonho, do delírio. Imaginar é agir sob uma ordem que opera com lógicas que não estão condicionadas às limitações impostas pelos discursos do coach, das religiões hegemônicas, das estruturas de pensamento que constituem uma cultura. Imaginar rasga o véu da realidade imposta e cria as condições, a possibilidade de que um mundo melhor nasça. Senão melhor, pelo menos um outro que não este.


Uma velha anedota diz que em um prato onde encontra-se um ovo frito e um pedaço de bacon, a galinha está apenas envolvida no assunto. O porco, porém, está intimamente comprometido. Isso é inspirador: o Arena comprometeu-se com a realidade sócio, política de seu tempo e criou poesia, imaginou um mundo, criou inclusive um terreno fértil para o surgimento de fazer teatral novo, a partir da perspectiva dos oprimidos do mundo, que é o Teatro do Oprimido, do Augusto Boal.


E é bonito e muito inspirador que mesmo tendo encerrado suas atividades, o Arena segue atuando. Segue atuando aqui, enquanto este texto é escrito, enquanto olhamos para o passado e somos encorajados a sonhar um futuro. Melhor? Não sabemos. Mas outro, pelo menos, outro.



FICHA TÉCNICA

Texto: O beijo no asfalto

Autor: Nelson Rodrigues

Adaptação do texto e Orientação da direção: Kenan Bernardes

Atores-criadores: Diego Macedo (Cunha), Kamila Araújo (Selminha) e Pedro Dantas (Amado)





Trabalho apresentado para a disciplina de História do Teatro Brasileiro I, ministrada por Manoel Candeias na Escola Superior de Artes Célia Helena - Licenciatura em Teatro.


0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial