26 junho 2024

SOBRE O BRASIL E PÁSSAROS QUE OLHAM PRA TRÁS

 

Comecei a perder a visão no final da adolescência. No começo, a coisa se deu sem estardalhaços: a resolução de um problema de Matemática na lousa que eu não conseguia acompanhar, um rosto amigo que não era identificado no outro lado da rua, o letreiro embaralhado do ônibus que me fazia perder a condução de volta para casa. Parecia ser coisa simples, que se resolveria com o diagnóstico de miopia ou astigmatismo e a receita de óculos. Coisa sem importância. Não era. O diagnóstico de Doença de Stargardt impôs-se, autoritário. A perda da visão seria progressiva, sem chance de tratamento ou cura, com discreta probabilidade de estagnação em algum momento.

Em linhas gerais, a Doença ou Mal de Stargardt é a distrofia macular hereditária que destrói a visão a partir do centro e impossibilita distinguir as cores e os detalhes. Atinge uma a cada dez mil pessoas no mundo e é considerada uma patologia rara. Portanto, com baixos investimentos em pesquisas. De lá para cá se tem cumprido o que o oráculo médico determinou: vivo como se estivesse diante de uma grande tela de cinema a assistir um filme cuja imagem cada vez mais turva segue em um longo e lento fade in.

Essa incerteza de enxergar no futuro – note-se: eu disse  enxergar no futuro, porque enxergar o futuro é uma deficiência da qual todos somos participantes, mas enxergar no futuro -  relaciona-se diametralmente em oposição à dificuldade que encontro para enxergar no passado “o rastro de nossos ancestrais” a que se refere Krenak. Desta vez, não por uma imposição da vida, mas por contingências da história.

Em 2019, Wladimir Safatle, filósofo e professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, num seminário sobre memória e patrimônio organizado pelo Sesc São Paulo, refletiu sobre a relação que a sociedade brasileira tem com a noção de memória. Partindo do conceito hegeliano de que o acontecimento histórico ocorre sempre duas vezes – na primeira, o acontecimento histórico real, e na segunda, o acontecimento como uma inscrição simbólica, com muito mais força e mesmo realidade que a primeira, capaz de dar sentido retroativo àquela. Como um romance que a cada capítulo escrito reordena e ressignifica os anteriores. De acordo com essa ideia, a memória é o processo de reinscrição dos acontecimentos.

Esta noção, afirma Safatle, foi decisiva no processo de constituição da noção subjetiva de memória. Noção esta que, em Sigmund Freud, desdobrou-se no entendimento de que as experiências nunca são integradas em sua totalidade, quando recordadas posteriormente. Absorvemos traços de determinada cena: um tipo de olhar, um cheiro, uma sensação que nem sempre conseguimos nomear. Enfim, traços que, associados a outras experiências, criam como que sulcos no terreno do lembrar. Não lembramos do fato. Mas de uma imagem desbotada, um sentimento difuso, um detalhe que pode ganhar contornos e entendimentos novos a depender de que lugar do presente se visita esse passado.

A relação dessas ideias com a noção de memória que a sociedade brasileira pratica se dá pela negação.  A negação do passado. O bloqueio da memória das violências impostas a determinados setores, numa recusa contínua em olhar e, menos ainda, elaborar os seus traumas. Não por acaso, o Brasil, entre outros países latino-americanos que passaram por ditaduras, é o único do subcontinente onde não há nenhum torturador na cadeia.

A história do Brasil é constituída pelo signo da violência e, pior, pelo apagamento dessa violência. Meses antes dessa preleção de Safatle, curiosamente a escola de samba Estação Primeira da Mangueira foi campeã do carnaval carioca com o samba-enredo “A história que a História não conta”, cantando “versos que o livro apagou”, expondo que “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado” e exigindo: “eu quero um país que não está no retrato”.

Essa experiência de apagamento a que se refere o samba da Mangueira é chamada de “Maafa” pela antropóloga afro-americana Malimba Ami. Maafa é um fenômeno de poder e de desumanização que assola pessoas negras no mundo. Começa com a invasão do continente africano para fins de dominação e exploração e passa pelo sequestro, encarceramento, volta na árvore do esquecimento, embarque, travessia, desembarque, leilão, escravização, pós-escravidão, favelização, guetificação e genocídio negro tanto no Brasil como em outros territórios. Como é o trato com a memória de populações fundadas no conceito de Maafa?

Retomando a referida conferência, a única maneira de fazer o passado passar é elaborá-lo. O trauma social, quando não elaborado, ressurge como fantasma a assombrar o presente. Safatle diz ainda sobre o porquê de o Brasil não ser capaz de elaborar a sua memória: “Porque, sendo a memória um processo de reinscrição contínua, ela [a memória] não é só um processo de flexibilização de fatos e acontecimentos. Ela é um processo que obriga uma transformação contínua de si a partir de um movimento que é ao mesmo tempo retroação e projeção. Quer dizer, aquele que rememora, não permanece o mesmo. Ele não simplesmente integra alguma coisa. Ele cria um campo de implicação entre vários elementos que antes não pareciam ter relação. E, ao criar esse campo, ele modifica todos esses elementos. Porque memória é uma operação fundamental de reconhecimento.” E reconhecimento aqui, diz ele, é um processo através do qual se integra no próprio campo de conhecimento algo ou alguém que até aquele momento não existia nesse campo. E, por isso, o campo muda.  Reconhecer é transformar não só aquele que é reconhecido, mas principalmente quem reconhece – finaliza  Safatle.

Desde 2003 o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira é obrigatório nas escolas. A Lei nº 10.639 foi sancionada no inicio do primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva e, em 2008, foi complementada, ampliando o conteúdo aos povos e culturas indígenas. Mas em 70% dos munícipios do país o ensino dessas disciplinas ainda é um quadro em branco. Durante meu período de formação artística na Escola Livre de Teatro de Santo André, entre os anos de 2006 e 2010, o ensino sobre teatralidades não-europeias foi desconsiderado. Mesmo os estudos sobre Teatro Brasileiro não foram capazes de acolher sequer Augusto Boal, Abdias do Nascimento e muito menos formas teatrais herdadas das culturas populares, como Folias de Reis, Congadas, Maracatus e  Moçambiques. Essa desconsideração da possibilidade de contribuições advindas de experiências teatrais que não estão nos currículos oficiais de ensino do teatro não é particularidade da ELT. O que a gente lembra e o que a gente esquece também contam uma história sobre quem nós somos. O que é oficializado e o que é mantido na marginalidade na dinâmica do (re)conhecimento é e sempre será uma política do que merece seguir vivo ou não.

“Nunca é tarde para voltar ao passado e pegar lá atrás o que ficou” é um adágio filosófico da língua assanti e que está relacionado em larga medida com o conceito de sankofa. Sankofa é um ideograma da cultura dos escravizados africanos trazidos de GanaTogo e Burquina Fasso que consiste num pássaro com a cabeça voltada para trás ou também pela forma de duas voltas justapostas, espelhadas, lembrando um coração. A etimologia da palavra, em ganês, inclui os termos san (voltar, retornar), ko (ir) e fa (olhar, buscar e pegar). Uma  explicação filosófica  possível traz a ideia de um pássaro que vai ao passado buscar  as pedras da experiência deixadas pelos nossos ancestrais e as trazem para o presente a fim de plantar um futuro. Um futuro de resistência, de permanência, de continuidade.


Foto: Julieta Bacchin

Comecei a ensaiar um movimento “sankofa” em meados de 2013, quando passei a integrar o Coletivo Quizumba, que na ocasião desbruçava-se sobre uma pesquisa de corporalidade a partir da prática da Capoeira Angola e no desenvimento de obras afro-referenciadas para as infâncias e adolências, cujos eixos temáticos giravam em torno da memória de eventos históricos brasileiros  protagonizados pelo povo negro. Quatro  anos depois concebi e produzi o monólogo Kaim, uma releitura da obra Caim, do Prêmio Nobel de Literatura  José Saramago em fricção com  minhas memórias registradas num diário ao longo dos anos 2011 e 2012. O experimento fazia um paralelo  entre a figura bíblica  e um homem preto do século XXI sobre os conflitos relacionados à herança legadas pelas religiões  judaico-cristãs. A dramaturgia foi assinada por Dione Carlos e direção de Wagner Antônio. O experimento foi resultado de uma Ocupação Artística realizada no teatro Centro da Terra.


Foto: JUlieta Bacchin

No ano seguinte, a memória de um lugar foi o disparador do também monólogo Medea Mina Jeje. O poema cênico constituia-se a partir da fricção entre a narrativa polissêmica da Medea negra da Mina Jeje, escravizada na Vila Rica de Nossa Senhora de Pilar de Ouro Preto, nas Minas Gerais do século XVIII, e a leitura da tragédia de Eurípides, datada de 431 a. C. Para este projeto convidei Rudinei Borges dos Santos e Juliana Monteiro para assinarem a dramaturgia e direção, respectivamente. A peça estreou dentro do projeto Teatro Mínimo do Sesc Ipiranga.

 

Foto: Julieta Bacchin

Otelo, o outro, fricciona as memórias de homens pretos recolhidas em depoimentos durante a pandemia de COVID-19 sobre os processo de (re)reconhecimento de sua ancestralidade negra e Otelo, o mouro de Veneza, de Willian Shakespeare. A peça, que estreou no Centro Cultural São Paulo em agosto de 2023, tem dramaturgia assinada por Israel Neto, Joaci Pereira Furtado e por mim, com direção de Miguel Rocha. Atualmente produzo Bacurau: um rosto sem memória, podcast documental em três episódios que busca resgatar a trajetória de um conhecido andarilho – não por acaso, um homem negro – da cidade de São Caetano do Sul a partir da memória oral de seus moradores.


A questão que está posta nesta breve reflexão não é uma defesa da preservação da memória. A memória não preserva nada. Ela não deixa nada do  jeito que estava, a cada vez que se rememora algo, rompendo a cegueira em relação ao passado, há sempre a possibilidade de se refazê-lo, de revê-lo. Lembrar é, portanto, transformar. Como uma obra de arte, que a tudo explode para além do contexto em que foi criada e atravessa o tempo e o espaço, reconstituindo-se em múltiplos e infinitos  desdobramenstos. Esse lembar enquanto transformação é o sankofa, é o  explodir contínuo do tempo afetando o passado, o presente o futuro. Ao mesmo tempo. E agora.


_____

Kenan Bernardes  é ator formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, SP, produtor e co-fundador da OKA TEATRO. Texto escrito para o processo seletivo na escola Superior de ares Célia Helena.

  

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial