23 março 2025

RCT - NÃI ANDES NUA POR AÍ


    O espetáculo Não andes nua por aí esteve em cartaz no Teatro Itália, em São Paulo, entre os dias 9 de janeiro e 21 de fevereiro de 2025, sempre aos sábados às 20h e domingos às 19h. A montagem é parte de um Festival de Comédias organizado pelo Grupo Tapa e contou também com outros dois espetáculos: A falecida senhora sua mãe, do mesmo autor, e Jantar de despedida, de Arthur Schnitzler, um texto curtíssimo da coletânea que o Grupo TAPA montou em 2018 no espetáculo Anatol. No elenco, André Garolli, Camila Czerkes, Laerte Melloe Maurício Bittencourt.

Não andes nua por aí, escrita em 1911, satiriza a sociedade burguesa da época, expondo as contradições de seus costumes e moralidades. Na trama, Ventroux (André Garolli) é um político preocupado com o hábito inconveniente de sua esposa Clarice (Camila Czerkes) de andar em trajes íntimos pela casa, o que pode prejudicar sua reputação e comprometer sua carreira. Uma série de situações cômicas se desenrola a partir da chegada inesperada de um político da oposição (Laerte Mello) e de um jornalista de um grande periódico, que podem colocar a carreira de Ventroux em risco.

É a primeira vez que o TAPA encena textos de Georges Feydeau e incorpora ao seu repertório um autor que se consagrou como um dos grandes mestres da comédia francesa do final do século XIX e início do século XX. Georges Léon Jules Marie Feydeau nasceu em Paris em 1862, filho do romancista Ernest-Aimé Feydeau e de Léocadie Bogaslawa Zalewska. Aos 20 anos, escreveu seu primeiro monólogo cômico. Quatro anos depois, casou-se com Marianne Carolus-Duran, filha do famoso pintor Carolus-Duran, o que lhe garantiu estabilidade financeira para se dedicar à escrita. Suas obras são marcadas por um humor ágil, situações absurdas e diálogos espirituosos. Teve uma carreira bem-sucedida como dramaturgo, com textos encenados no exterior antes mesmo de estrearem na França. Mesmo assim, os críticos consideravam sua obra apenas entretenimento leve. Faleceu aos 58 anos em decorrência de complicações da sífilis.



Não andes nua por aí (Mais n'te promène donc pas toute nue!), escrita em 1911, satiriza a sociedade burguesa da época, expondo as contradições de seus costumes e moralidades.

A peça se encaixa no gênero do teatro de boulevard ou comédia de costumes. Os diversos subgêneros da comédia geralmente apresentam fronteiras bastante borradas no que diz respeito às características de cada um, e é muito comum encontrarmos pontos de contato entre um subgênero e outro. As características mais marcantes do teatro de boulevard são seu caráter popular e leve, destinado ao entretenimento do grande público. Ritmo acelerado, reviravoltas cômicas e personagens caricatos são outros pontos marcantes desse gênero. Já na comédia de costumes, a sátira dos comportamentos, situações e convenções sociais de uma época ou grupo é o foco para uma crítica do cotidiano. Fato é também que Feydeau foi um exímio escritor de farsas, cujos enredos são baseados em mal-entendidos, diálogos rápidos e situações absurdas. Não seria equivocado dizer que elementos de diversos tipos de comédia estão presentes na peça que está sendo analisada.

As escolhas da direção quanto aos poucos elementos que constituem o cenário e detalhes no figurino, tais como, cortinas de renda, biombos que separam o espaço principal da ação de outros cômodos da casa não vistos, cadeiras, uma mesinha de canto onde se apoiam objetos e o café, uma chaise longue e um tapete estampado, bem como acessórios como o chapéu e o adereço de pescoço utilizados pela atriz que interpreta Clarice, conseguem transportar o espectador para o interior de uma casa burguesa na França do início do século XX. A forte presença da cor vermelha nos elementos de cena sugere a temperatura picante dos temas e da ação que conduzem a narrativa.

A luz, quase sempre geral e em tons de amarelo, cria a sensação doméstica que o gênero pede e pode ser lida como uma indicação de que ali tudo será dito e feito às claras, e o espectador pode ficar à vontade para atuar como uma espécie de  voyeur da intimidade alheia.

A encenação possui um ritmo ágil, que constrói o tempo da narrativa de modo a produzir aquilo a que o texto se propõe: o riso. A performance dos atores e, sobretudo, o jogo entre eles criam, a cada reviravolta e desacerto da história, a rédea curta do fio que vai conduzindo a plateia.

Há uma constante orquestração de uma musicalidade na peça, que se vê presente nas relações entre os atores, na brincadeira da cena, presente também em uma corporeidade dinâmica e expressiva e, onde mais chamou minha atenção, no modo como cada personagem se constitui a partir de uma vocalidade muito distinta entre si. Foi nesse aspecto que minha atenção mais se deteve durante toda a representação. O registro “borbulhante” presente na vocalidade da personagem Clarice, a fala mais reta, firme e vigorosa de Ventroux e as lentas e longilíneas curvas presentes na construção vocal do mordomo (Maurício Bittencourt) criaram um jogo muito interessante e gostoso de ouvir. Não era o que era dito, mas o como. O que digo aqui não está na ordem do texto, mas na esfera das escolhas de interpretação vocal de cada artista e da condução do diretor. Considero estes, o jogo e a vocalidade, os pontos fortes da peça.



Com relação aos temas da peça, é possível ter uma pista já no título Não andes nua por aí, indicando a liberdade, ou a falta dela, para as mulheres. O controle sobre o corpo delas mostra-se pela imposição deste imperativo externo “Não...”. E não é apenas um “não”, mas também um “Não andes...”, posto que a questão parece não ser apenas a nudez pura e simples, a nudez por si só, mas uma nudez que “anda por aí...”, que se mostra, que se dá a ver, uma nudez que não se acanha, que se atreve a ocupar espaços que não deveria. Um “não andes...” como que a indicar uma interdição no modo de viver desta mulher, no modo como ela existe, revelando toda uma crítica à hipocrisia desta sociedade francesa da época, mas que possui ecos ressoantes até os dias de hoje.

Nos dois dias em que assisti à peça, 15 e 23 de fevereiro, a plateia estava dividida entre basicamente dois grupos: jovens estudantes de teatro e adultos aparentemente acima dos 40 anos. O Teatro Itália, localizado dentro do Edifício Itália, ícone da cidade, é muito frequentado pela classe média paulistana, com quem a montagem parece ter estabelecido uma comunicação bastante efetiva, dada a participação da plateia durante a apresentação e o burburinho no saguão do teatro após o término da sessão.

Por fim, a crítica social, de comportamento e de valores morais aos quais Não andes nua por aí se propõe, de certa forma realiza-se no riso do público. Ora debochado, constrangido, surpreso, escrachado e, acima de tudo, lúcido. Sim, lúcido. Porque só ri quem entende. O riso convoca do espectador a sua inteligência, a sua capacidade cognitiva de fazer relações, de elaborar ideias. O público ri porque entende. Quem ri conhece em si este poder. O poder de, ainda que por um breve momento, elucidar-se do absurdo, do ridículo, do trágico. Do humano. Do risível humano que somos todos nós.


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FICHA TÉCNICA

Não andes nua por aí

Texto:  Georges Feydeau 

Direção: Eduardo Tolentino de Araújo 

Produção de Arte: André Garolli, Flávio Tolezani, Paloma Galasso 

Sonoplastia: Paulo Marcos 

Design Gráfico: Mau Machado 

Fotografia: Ronaldo Gutierrez 

Operação de Luz: Jean L. D`Mauro 

Operação de Som: Ruiz Angellus 

Contra Regras e Assistência de Produção: Jean L. D`Mauro, Gabriela Woods, Patrícia Maruccio 

Direção de Produção: JP Franco

 

Classificação: 14 anos

Duração: 80 minutos.

 

Serviço: 

Local: Teatro Itália (Av. Ipiranga, 344 - República, São Paulo - SP) 

 

Festival de Comédias do Grupo Tapa

Ingressos: R$ 80 (inteira) | R$ 40 (meia) 


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