RCT - NÃI ANDES NUA POR AÍ
Não andes nua por aí, escrita em 1911,
satiriza a sociedade burguesa da época, expondo as contradições de seus
costumes e moralidades. Na trama, Ventroux (André Garolli) é um político
preocupado com o hábito inconveniente de sua esposa Clarice (Camila Czerkes) de
andar em trajes íntimos pela casa, o que pode prejudicar sua reputação e
comprometer sua carreira. Uma série de situações cômicas se desenrola a partir
da chegada inesperada de um político da oposição (Laerte Mello) e de um
jornalista de um grande periódico, que podem colocar a carreira de Ventroux em
risco.
É a primeira vez que o TAPA encena
textos de Georges Feydeau e incorpora ao seu repertório um autor que
se consagrou como um dos grandes mestres da comédia francesa do final do século
XIX e início do século XX. Georges Léon Jules Marie Feydeau nasceu em Paris em
1862, filho do romancista Ernest-Aimé Feydeau e de Léocadie Bogaslawa Zalewska.
Aos 20 anos, escreveu seu primeiro monólogo cômico. Quatro anos depois,
casou-se com Marianne Carolus-Duran, filha do famoso pintor Carolus-Duran, o
que lhe garantiu estabilidade financeira para se dedicar à escrita. Suas obras
são marcadas por um humor ágil, situações absurdas e diálogos espirituosos.
Teve uma carreira bem-sucedida como dramaturgo, com textos encenados no
exterior antes mesmo de estrearem na França. Mesmo assim, os críticos
consideravam sua obra apenas entretenimento leve. Faleceu aos 58 anos em
decorrência de complicações da sífilis.
Não andes nua por aí (Mais n'te
promène donc pas toute nue!), escrita em 1911, satiriza a
sociedade burguesa da época, expondo as contradições de seus costumes e
moralidades.
A peça se encaixa no gênero do teatro
de boulevard ou comédia de costumes. Os diversos subgêneros da
comédia geralmente apresentam fronteiras bastante borradas no que diz respeito
às características de cada um, e é muito comum encontrarmos pontos de contato
entre um subgênero e outro. As características mais marcantes do teatro de
boulevard são seu caráter popular e leve, destinado ao entretenimento do grande
público. Ritmo acelerado, reviravoltas cômicas e personagens caricatos são
outros pontos marcantes desse gênero. Já na comédia de costumes, a sátira dos
comportamentos, situações e convenções sociais de uma época ou grupo é o foco
para uma crítica do cotidiano. Fato é também que Feydeau foi um exímio escritor
de farsas, cujos enredos são baseados em mal-entendidos, diálogos rápidos e
situações absurdas. Não seria equivocado dizer que elementos de diversos tipos
de comédia estão presentes na peça que está sendo analisada.
As escolhas da direção quanto aos poucos
elementos que constituem o cenário e detalhes no figurino, tais como, cortinas
de renda, biombos que separam o espaço principal da ação de outros cômodos da
casa não vistos, cadeiras, uma mesinha de canto onde se apoiam objetos e o
café, uma chaise longue e um tapete estampado, bem como acessórios como o
chapéu e o adereço de pescoço utilizados pela atriz que interpreta Clarice,
conseguem transportar o espectador para o interior de uma casa burguesa na
França do início do século XX. A forte presença da cor vermelha nos elementos
de cena sugere a temperatura picante dos temas e da ação que conduzem a
narrativa.
A luz, quase sempre geral e em tons de
amarelo, cria a sensação doméstica que o gênero pede e pode ser lida como uma
indicação de que ali tudo será dito e feito às claras, e o espectador pode
ficar à vontade para atuar como uma espécie de
voyeur da intimidade alheia.
A encenação possui um ritmo ágil, que
constrói o tempo da narrativa de modo a produzir aquilo a que o texto se
propõe: o riso. A performance dos atores e, sobretudo, o jogo entre eles criam,
a cada reviravolta e desacerto da história, a rédea curta do fio que vai
conduzindo a plateia.
Há uma constante orquestração de uma
musicalidade na peça, que se vê presente nas relações entre os atores, na
brincadeira da cena, presente também em uma corporeidade dinâmica e expressiva
e, onde mais chamou minha atenção, no modo como cada personagem se constitui a
partir de uma vocalidade muito distinta entre si. Foi nesse aspecto que minha
atenção mais se deteve durante toda a representação. O registro “borbulhante”
presente na vocalidade da personagem Clarice, a fala mais reta, firme e
vigorosa de Ventroux e as lentas e longilíneas curvas presentes na construção
vocal do mordomo (Maurício Bittencourt) criaram um jogo muito interessante e
gostoso de ouvir. Não era o que era dito, mas o como. O que digo aqui não está
na ordem do texto, mas na esfera das escolhas de interpretação vocal de cada
artista e da condução do diretor. Considero estes, o jogo e a vocalidade, os
pontos fortes da peça.
Com relação aos temas da peça, é possível
ter uma pista já no título Não andes nua por aí, indicando a liberdade, ou
a falta dela, para as mulheres. O controle sobre o corpo delas mostra-se pela
imposição deste imperativo externo “Não...”. E não é apenas um “não”, mas
também um “Não andes...”, posto que a questão parece não ser apenas a nudez
pura e simples, a nudez por si só, mas uma nudez que “anda por aí...”, que se
mostra, que se dá a ver, uma nudez que não se acanha, que se atreve a ocupar
espaços que não deveria. Um “não andes...” como que a indicar uma interdição no
modo de viver desta mulher, no modo como ela existe, revelando toda uma crítica
à hipocrisia desta sociedade francesa da época, mas que possui ecos ressoantes
até os dias de hoje.
Nos dois dias em que assisti à peça, 15 e
23 de fevereiro, a plateia estava dividida entre basicamente dois grupos:
jovens estudantes de teatro e adultos aparentemente acima dos 40 anos. O Teatro
Itália, localizado dentro do Edifício Itália, ícone da cidade, é muito
frequentado pela classe média paulistana, com quem a montagem parece ter
estabelecido uma comunicação bastante efetiva, dada a participação da plateia
durante a apresentação e o burburinho no saguão do teatro após o término da
sessão.
Por fim, a crítica social, de comportamento e de valores morais aos quais Não andes nua por aí se propõe, de certa forma realiza-se no riso do público. Ora debochado, constrangido, surpreso, escrachado e, acima de tudo, lúcido. Sim, lúcido. Porque só ri quem entende. O riso convoca do espectador a sua inteligência, a sua capacidade cognitiva de fazer relações, de elaborar ideias. O público ri porque entende. Quem ri conhece em si este poder. O poder de, ainda que por um breve momento, elucidar-se do absurdo, do ridículo, do trágico. Do humano. Do risível humano que somos todos nós.
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FICHA TÉCNICA
Não andes nua por aí
Texto:
Georges Feydeau
Direção: Eduardo Tolentino de Araújo
Produção de Arte: André Garolli, Flávio Tolezani,
Paloma Galasso
Sonoplastia: Paulo Marcos
Design Gráfico: Mau Machado
Fotografia: Ronaldo Gutierrez
Operação de Luz: Jean L. D`Mauro
Operação de Som: Ruiz Angellus
Contra Regras e Assistência de Produção: Jean L.
D`Mauro, Gabriela Woods, Patrícia Maruccio
Direção de Produção: JP Franco
Classificação: 14 anos
Duração: 80 minutos.
Serviço:
Local: Teatro Itália (Av. Ipiranga, 344 - República,
São Paulo - SP)
Festival de Comédias do Grupo
Tapa
Ingressos: R$ 80
(inteira) | R$ 40 (meia)
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