04 junho 2025

RCT - NORA E A PORTA



 
        Em cartaz no Teatro Manás, em São Paulo, Nora e a Porta é mais que uma adaptação de Casa de Bonecas (1879), de Henrik Ibsen. Com dramaturgia de Marina Corazza e direção conjunta de Sandra Corveloni e Maristela Cheldia, a montagem traz à cena uma releitura pulsante e engajada, atravessada por discursos feministas contemporâneos e estratégias teatrais não realistas, sem perder o fio da contundência do original. A peça, sem jamais trair a estrutura fundadora de Ibsen, a reconfigura em cena como manifesto e espelho: o gesto de Nora ganha novos contornos simbólicos, apontando para as muitas portas que ainda se impõem às mulheres hoje.

Publicada no final do século XIX, Casa de Bonecas chocou ao retratar uma mulher que abandona marido e filhos em nome de sua própria liberdade. Nora Helmer se tornou ícone da emancipação feminina, e seu gesto final — o bater da porta — é um dos momentos mais contundentes da história do teatro moderno. Em Nora e a Porta, esse gesto é amplificado: já não se trata apenas de sair de uma casa, mas de desmantelar, aos poucos, toda a arquitetura simbólica do patriarcado. Corazza introduz diálogos que ampliam e atualizam as discussões em cenas metateatrais, onde os atores, entre outras estratégias, abrem para o público as discussões das quais se valeram no processo de criação do espetáculo.

A personagem central percorre um arco que vai da doçura quase caricatural da dona-de-casa-mãe-e-esposa que performa um papel que lhe foi imposto à consciência dilacerante de sua condição de mulher.
    Aliás, a ideia da performance de um papel, da interpretação, da representação, da atuação é o cerne da discussão a que essa montagem se propõe. O jogo cênico se dá a partir do constante vai e vem dos atores e atrizes/personagens que, ora vivem os dilemas das assimetrias de poder que operam na trama, sobretudo entre homens e mulheres – embora outras desigualdades sociais sejam tangenciadas sem aprofundamento, como as questões de classe e raça – ora essas mesmas personagens são narradas pelos artistas, que, ao se utilizarem deste recurso épico, possibilitam ao espectador observar criticamente tanto os pilares que sustentam as opressões históricas retratadas quanto as estruturas do próprio jogo teatral.

A metateatralidade atinge seu ápice na cena da festa à fantasia, em que vemos a caleidoscopia do emaranhado que pode ser a dinâmica de representações de papéis sociais a que estamos todos sujeitos: os que nos são impostos, os que assumimos ao longo da vida conscientemente ou não, ou mesmo aqueles que fantasiamos. O marido de Nora é um homem que a ama, mas o faz de forma autoritária, cego à desigualdade estrutural que sustenta seu “amor”. Essa ambiguidade traz à peça uma camada ética complexa: não se trata de vilões, mas de estruturas sociais enraizadas.

A primeira parte da peça flerta com o cômico, como se fosse uma comédia romântica, mas aos poucos o tom muda: a tensão cresce, o riso esfria, e somos lançados num terreno de violência simbólica.

O terceiro e último ato, repensado por Corazza, mantém a força do original e é ainda potencializado pela escolha das encenadoras, que criam uma fotografia quase estática, um retrato típico de família, que possivelmente todos nós já reproduzimos em nossas reuniões familiares. É desta imagem congelada no tempo que presenciamos o fim – ou o começo – a que Nora vai criar para si.

Mas não antes de ser quebrada uma última vez, ao sofrer o que, indubitavelmente, é das mais degradantes violências a que um ser humano possa ser submetido: a violação de seu corpo. A violação do corpo do outro nunca é o primeiro passo no processo de desumanização daquele, daquela que é entendida como Outro. São incontáveis micro violências a que uma mulher será submetida ao longo da vida antes que o estupro ou o feminicídio aconteça. Aqui, Nora vai sofrer uma tentativa de estupro do próprio marido. No seio de seu sonho de classe média, construído com tanto esforço e esmero, no centro de sua sala de estar onde tantas vezes ela exibiu sua felicidade em jantares que celebravam cada degrau da ascensão econômica que seu marido subia, onde seu tão fetichizado casal de filhos gêmeos existia livre e entediado, sem falta de nada, empanturrado de açúcar e jogos em tablets de última geração. Bem aqui, no centro de sua casa de bonecas, Nora vai ruir antes de se erguer.

Os diálogos se dão dentro deste retrato imóvel já mencionado. Há um estranhamento proposto pela imobilidade dos corpos presos nos papéis que performaram até ali. Diante deles, os espectadores também se enxergam, como em um espelho, em sua própria fixidez ante os personagens que ora encenam e os encerra fora dali.

A cenografia minimalista constitui-se a partir de dois signos muito contundentes: uma casinha de bonecas localizada no topo de uma escadaria, para onde Nora tenta se dirigir diversas vezes durante a peça, mas sem sucesso – como a indicar a impossibilidade de realização a que se propõe o projeto patriarcal imposto para as mulheres; e uma porta, um vão, um rasgo, uma fissura nessa prisão chamada de lar.

Marina Corazza não romantiza a trajetória de Nora. Ela é mimada, contraditória, cúmplice – e não responsável ou culpada – de sua própria opressão por vezes, mas justamente por isso é humana. Ao inserir discussões sobre assédio, violência psicológica e solidão, Corazza expande o conflito sem desfigurá-lo. Nesta releitura, Nora encontra um certo refúgio, ainda que escorregadio, em um único amigo, Rodrigo, um médico negro, personagem que aponta, sem desenvolver, um espelhamento nas opressões históricas a que ambos estão submetidos em níveis distintos, evidentemente. Ele não tem passado nem família. Ele está ali a serviço do drama de Nora. Ele existe para contar a história de Nora. Tal como a protagonista, ele também sinaliza que em breve não estará mais ali. Também abandonará esse barco que afunda na medida em que a História avança.

Um ponto a se questionar é o excesso de legenda a que a peça se vale em momentos em que os atores encenam uma discussão sobre o processo de feitura do próprio espetáculo. Em uma dessas “pausas”, após uma discussão sobre os significados possíveis do que seria a releitura deste clássico, leitura de um longo trecho de Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, uma das atrizes/personagens declara: “Esta peça é sobre este ‘isto’...” e expõe a tese que orienta a dramaturgia, explicando para o espectador o que, de algum modo, já estava dado ou que poderia ser compreendido sem esse desnecessário sublinhar do quê e de como se deveria entender a peça. Considero este o ponto fraco da montagem, porque o que era desenvolvido nesses momentos de “pausa” operava muito mais numa lógica explicativa e professoral, apontando coisas, mas não radicalizando nas contradições possíveis.

A montagem falha na sua incapacidade de elaborar mais perguntas, ao invés de fornecer afirmações disfarçadas de debate de ideias. Subtrai do espectador o direito de chegar por si só, e mesmo de chegar a outras conclusões diferentes das propostas pela peça. Nesse sentido, o risco que a montagem corre nestes momentos é baixo e se porta negativamente como uma aula. Abrir espaços para perguntas sem a necessidade de oferecer uma resposta, um ensinamento, deixar o público sob a angústia das contradições impostas pela experiência humana não poderia ser igualmente positivo pedagogicamente? Que perguntas a peça poderia ter deixado em aberto? Como uma porta que, ao ser aberta, possibilita uma passagem para o desconhecido.


PARA LER AO SOM DE “CORPO NO MUNDO”, COM LUEDJI LUNA: https://www.youtube.com/watch?v=pcEe9nU0P4Q

 

FICHA TÉCNICA

Nora e a porta

Ficha Técnica

Dramaturgia: Marina Corazza

Direção: Sandra Corveloni

Elenco: Adriana Mendonça, Anderson Negreiro, André Garolli, Carlos de Niggro, Heitor Goldflus e Rita Pisano

Coordenação de Produção: Mosaico Produções

Produção Executiva: Cícero de Andrade

Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira

Fotografia: Angélica Prieto

 

Serviço

Classificação indicativa: 14 anos

Duração: 90 minutos

De 30/05 à 08/06.

Sexta e sábado 20:30h, domingo 18h.

Teatro Manás - R. Treze de Maio, 222, Bela Vista, São Paulo, SP

Ingressos: R$ 60 (inteira) / R$ 30 (meia)


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