RCT - NORA E A PORTA
Publicada no final do
século XIX, Casa de Bonecas chocou ao retratar uma mulher que abandona
marido e filhos em nome de sua própria liberdade. Nora Helmer se tornou ícone
da emancipação feminina, e seu gesto final — o bater da porta — é um dos
momentos mais contundentes da história do teatro moderno. Em Nora e a Porta,
esse gesto é amplificado: já não se trata apenas de sair de uma casa, mas de
desmantelar, aos poucos, toda a arquitetura simbólica do patriarcado. Corazza
introduz diálogos que ampliam e atualizam as discussões em cenas metateatrais,
onde os atores, entre outras estratégias, abrem para o público as discussões
das quais se valeram no processo de criação do espetáculo.
A personagem central
percorre um arco que vai da doçura quase caricatural da
dona-de-casa-mãe-e-esposa que performa um papel que lhe foi imposto à
consciência dilacerante de sua condição de mulher.
Aliás, a ideia da performance de um papel, da interpretação, da
representação, da atuação é o cerne da discussão a que essa montagem se propõe.
O jogo cênico se dá a partir do constante vai e vem dos atores e
atrizes/personagens que, ora vivem os dilemas das assimetrias de poder que
operam na trama, sobretudo entre homens e mulheres – embora outras
desigualdades sociais sejam tangenciadas sem aprofundamento, como as questões
de classe e raça – ora essas mesmas personagens são narradas pelos artistas,
que, ao se utilizarem deste recurso épico, possibilitam ao espectador observar
criticamente tanto os pilares que sustentam as opressões históricas retratadas
quanto as estruturas do próprio jogo teatral.
A metateatralidade
atinge seu ápice na cena da festa à fantasia, em que vemos a caleidoscopia do
emaranhado que pode ser a dinâmica de representações de papéis sociais a que
estamos todos sujeitos: os que nos são impostos, os que assumimos ao longo da
vida conscientemente ou não, ou mesmo aqueles que fantasiamos. O marido de Nora
é um homem que a ama, mas o faz de forma autoritária, cego à desigualdade
estrutural que sustenta seu “amor”. Essa ambiguidade traz à peça uma camada
ética complexa: não se trata de vilões, mas de estruturas sociais enraizadas.
A primeira parte da
peça flerta com o cômico, como se fosse uma comédia romântica, mas aos poucos o
tom muda: a tensão cresce, o riso esfria, e somos lançados num terreno de
violência simbólica.
O terceiro e último
ato, repensado por Corazza, mantém a força do original e é ainda potencializado
pela escolha das encenadoras, que criam uma fotografia quase estática, um
retrato típico de família, que possivelmente todos nós já reproduzimos em
nossas reuniões familiares. É desta imagem congelada no tempo que presenciamos
o fim – ou o começo – a que Nora vai criar para si.
Mas não antes de ser
quebrada uma última vez, ao sofrer o que, indubitavelmente, é das mais
degradantes violências a que um ser humano possa ser submetido: a violação de
seu corpo. A violação do corpo do outro nunca é o primeiro passo no processo de
desumanização daquele, daquela que é entendida como Outro. São incontáveis
micro violências a que uma mulher será submetida ao longo da vida antes que o
estupro ou o feminicídio aconteça. Aqui, Nora vai sofrer uma tentativa de
estupro do próprio marido. No seio de seu sonho de classe média, construído com
tanto esforço e esmero, no centro de sua sala de estar onde tantas vezes ela
exibiu sua felicidade em jantares que celebravam cada degrau da ascensão
econômica que seu marido subia, onde seu tão fetichizado casal de filhos gêmeos
existia livre e entediado, sem falta de nada, empanturrado de açúcar e jogos em
tablets de última geração. Bem aqui, no centro de sua casa de bonecas, Nora vai
ruir antes de se erguer.
Os diálogos se dão
dentro deste retrato imóvel já mencionado. Há um estranhamento proposto pela
imobilidade dos corpos presos nos papéis que performaram até ali. Diante deles,
os espectadores também se enxergam, como em um espelho, em sua própria fixidez
ante os personagens que ora encenam e os encerra fora dali.
A cenografia
minimalista constitui-se a partir de dois signos muito contundentes: uma
casinha de bonecas localizada no topo de uma escadaria, para onde Nora tenta se
dirigir diversas vezes durante a peça, mas sem sucesso – como a indicar a
impossibilidade de realização a que se propõe o projeto patriarcal imposto para
as mulheres; e uma porta, um vão, um rasgo, uma fissura nessa prisão chamada de
lar.
Marina Corazza não
romantiza a trajetória de Nora. Ela é mimada, contraditória, cúmplice – e não
responsável ou culpada – de sua própria opressão por vezes, mas justamente por
isso é humana. Ao inserir discussões sobre assédio, violência psicológica e solidão,
Corazza expande o conflito sem desfigurá-lo. Nesta releitura, Nora encontra um
certo refúgio, ainda que escorregadio, em um único amigo, Rodrigo, um médico
negro, personagem que aponta, sem desenvolver, um espelhamento nas opressões
históricas a que ambos estão submetidos em níveis distintos, evidentemente. Ele
não tem passado nem família. Ele está ali a serviço do drama de Nora. Ele
existe para contar a história de Nora. Tal como a protagonista, ele também
sinaliza que em breve não estará mais ali. Também abandonará esse barco que
afunda na medida em que a História avança.
Um ponto a se
questionar é o excesso de legenda a que a peça se vale em momentos em que os
atores encenam uma discussão sobre o processo de feitura do próprio espetáculo.
Em uma dessas “pausas”, após uma discussão sobre os significados possíveis do
que seria a releitura deste clássico, leitura de um longo trecho de Calibã e
a Bruxa, de Silvia Federici, uma das atrizes/personagens declara: “Esta
peça é sobre este ‘isto’...” e expõe a tese que orienta a dramaturgia,
explicando para o espectador o que, de algum modo, já estava dado ou que
poderia ser compreendido sem esse desnecessário sublinhar do quê e de como se
deveria entender a peça. Considero este o ponto fraco da montagem, porque o que
era desenvolvido nesses momentos de “pausa” operava muito mais numa lógica
explicativa e professoral, apontando coisas, mas não radicalizando nas
contradições possíveis.
A montagem falha na sua incapacidade de elaborar mais perguntas, ao invés de fornecer afirmações disfarçadas de debate de ideias. Subtrai do espectador o direito de chegar por si só, e mesmo de chegar a outras conclusões diferentes das propostas pela peça. Nesse sentido, o risco que a montagem corre nestes momentos é baixo e se porta negativamente como uma aula. Abrir espaços para perguntas sem a necessidade de oferecer uma resposta, um ensinamento, deixar o público sob a angústia das contradições impostas pela experiência humana não poderia ser igualmente positivo pedagogicamente? Que perguntas a peça poderia ter deixado em aberto? Como uma porta que, ao ser aberta, possibilita uma passagem para o desconhecido.
PARA LER AO SOM DE “CORPO NO MUNDO”, COM LUEDJI LUNA: https://www.youtube.com/watch?v=pcEe9nU0P4Q
FICHA TÉCNICA
Nora e a porta
Ficha Técnica
Dramaturgia: Marina Corazza
Direção: Sandra Corveloni
Elenco: Adriana Mendonça, Anderson Negreiro, André
Garolli, Carlos de Niggro, Heitor Goldflus e Rita Pisano
Coordenação de Produção: Mosaico Produções
Produção Executiva: Cícero de Andrade
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Fotografia: Angélica Prieto
Serviço
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 90 minutos
De 30/05 à 08/06.
Sexta e sábado 20:30h, domingo 18h.
Teatro Manás - R. Treze de Maio, 222, Bela
Vista, São Paulo, SP
Ingressos: R$
60 (inteira) / R$ 30 (meia)
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