Reflex]ao
crítica
Pergunta:
Qual é o verdadeiro propósito do teatro na educação, e como resistir à
sua transformação em mais um produto de consumo?
Conteúdo
abordado em aula:
hooks, bell. Ensinar é
transgredir: educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. 1. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Referência
externa:
LENINE. Paciência. In:
Labiata. Rio de Janeiro: Sony Music, 2008. 1 CD (5 min 21 s). Faixa
3.
“Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para”
Lenine
ENQUANTO O TEMPO ACELERA E PEDE PRESSA...
Em dezembro de 2006, Viviane Mosé, filósofa, psicóloga
e poeta, participou de um Café Filosófico cujo tema era “Desafios
da Educação Brasileira”.
Em certo momento, ela provoca a plateia ao afirmar que ninguém necessita de
mais professores de Filosofia ou Matemática, e sim de educadores comprometidos
mais com os alunos do que com suas matérias. Para ela, o saber só tem
significado quando vinculado à realidade concreta. Nada possui sentido
isoladamente, e qualquer conhecimento dissociado da vida mesmo é vazio.
Quem nunca questionou, durante o período de formação
básica escolar, a razão de aprender certos conteúdos? Muitas vezes, parecia não
haver relação entre o que era ensinado e nossa existência naquele momento — ou
mesmo com o futuro que nos aguardava. Embora essa indagação carregasse um viés
utilitarista, também é verdade que frequentemente havia uma desconexão entre o
aprendizado formal e nosso cotidiano.
Nessa conferência, Mosé também afirma que ninguém
deveria ocupar-se em ser professor disso ou daquilo, mas
sim professor de aluno. Quer dizer, é no encontro com o outro que o
aprendizado deveria estar centralizado, e não no conteúdo. O que o ensino do
teatro pode auxiliar a refletir sobre uma experiência de conhecimento que se dá
a partir dessa ideia de encontro?
Numa sociedade capitalista, em que tudo se converte em mercadoria, as pessoas
são reduzidas a público-alvo, consumidores, clientes — nunca cidadãos. Essa
lógica impregnou de tal forma nossa subjetividade que quase nada escapa à
máquina de precificação: nossa forma de amar, de viver a sexualidade, de buscar
diversão, de cuidar do corpo, de nos alimentar,, de escolher uma carreira, de
estudar — tudo é transformado em produto e revendido a nós mesmos. Somos
incapazes de ver, ouvir, cheirar, tocar, mexer, falar, de andar, de imaginar,
até de sonhar sem referência aos significantes que nos dominam.
A própria noção de EXPERIÊNCIA foi
fagocitada por essa engrenagem, empacotada como algo que se compra.
ATÉ QUANDO O CORPO PEDE UM POUCO MAIS DE ALMA...
Mesmo nas escolas onde se ensina teatro, essa
concepção de experiência é frequentemente engolida por uma dinâmica que exige a
montagem de espetáculos em cerca de 30 aulas, apresentados ao público sem o
tempo necessário para amadurecimento artístico. Quando a relação com essas
instituições ainda é mediada pelo dinheiro — no caso das escolas particulares
—, parece haver uma pressão de pais/alunos clientes por resultados
tangíveis. As peças são exibidas precocemente, ainda imaturas — não necessariamente
por responsabilidade dos profissionais que conduzem os processos criativos, mas
por conta dos limites institucionais que se impõem sobre a sala de aula.
Questiono: esse ritmo permite que os alunos
sejam transformados pelo processo, e não esmagados por ele? Quem se
beneficia?
Quem lucra com o fetiche das “apresentações de fim de
ano” em escolas regulares, que deixam docentes de artes em desespero, já que
aquela exibição será usada também para avaliar sua competência?
Obviamente, reconheço a relevância de apresentar um
trabalho ao público — sem isso, o teatro não se completa. Minha consideração
dirige-se à linha de produção de espetáculos, que movimenta a
economia de certos centros de ensino.
Quando bell hooks, escritora, teórica feminista e
ativista, descreve em Ensinar como prática libertadora sua
trajetória em escolas para crianças negras durante a segregação racial nos EUA,
ela fala de um espaço onde podia se reinventar por meio de novas ideias.
Quanto tempo uma ideia precisa para florescer no espírito de alguém? Um dia? Um
ano? Uma vida? É impossível medir. Por isso, talvez, a aprendizagem artística
devesse seguir seu próprio ritmo.
EU ME RECUSO, FAÇO HORA E VOU NA VALSA...
Iniciativas como a Escola Livre de Teatro de
Santo André (ELT) resistem a essa lógica. Fundada em 1990, a ELT é um
marco na formação teatral pública e gratuita no Brasil. Criada sob a gestão de
Celso Daniel, inspira-se no teatro de grupo e rejeita hierarquias rígidas. Sem
currículo fixo, seu projeto pedagógico adapta-se a cada turma, privilegiando a
experimentação. Ao longo do curso, compartilham-se os processos — os
chamados working in progress — com a comunidade, e apenas no
final de quatro anos surge um espetáculo, que levará pouco mais de um ano para
ser levado a público.
Minha primeira formação como artista foi na ELT. Um
dos traços mais marcantes era o tempo concedido para cada projeto. Em três
anos, além da peça final, minha turma realizou três exercícios cênicos — cada
um exigiu cerca de um ano de investigação. Não se trata de definir prazos
ideais, mas de ilustrar uma experiência que valoriza o processo, onde o
aprendizado flui de maneira mais orgânica e, talvez por isso mesmo, um pouco
mais lenta, permitindo aos aprendizes um tempo de decantação dos aprendizados,
sem a pressão do resultado, de chegar a um “espetáculo final”. Ao término, não
há diplomas: cada artista leva consigo o conhecimento que seu corpo deu conta
de acolher. É mais sobre aprender a aprender, sobre a construção de
uma postura em relação ao fazer artístico.
Considero o projeto pedagógico da ELT uma alternativa,
não um modelo a ser seguido. É, sem dúvida, uma resposta corajosa aos modelos
de escolas de teatro mais convencionais. Mas não é o único.
SERÁ QUE É TEMPO QUE NOS FALTA PRA PERCEBER?...
Em seu livro, hooks defende que uma educação como
prática da liberdade seja capaz de desmontar os mecanismos de dominação que
atuam sobre determinada sociedade. Se o capital opera na lógica do “tempo
é dinheiro”, o ensino do teatro não deveria operar na lógica do “tempo
é arte”? Não estaria o tempo kronos — o tempo da lógica
corporativista, o tempo do “nós lucramos enquanto eles dormem” —
dominando nossos modos de criação?
Atualmente é dificílimo que espaços públicos acolham
temporadas teatrais com mais do que 12 sessões. Quase impossível, eu diria.
Instituições como o Sesc — que, em São Paulo, possui orçamento semelhante ao do
Governo do Estado (cerca de 1 bilhão e 1,2 bilhão, respectivamente) —, via de
regra, não contratam espetáculos já estreados. A cada seis meses, centenas de
montagens estudantis entram em cartaz por não mais do que um final de semana
nas escolas de teatro. Nossa sociedade está lidando com o teatro como quem rola
o feed do Instagram. Tem muita coisa sendo produzida, mas o
que de fato fica? O que de fato nos toca? O que nos atravessa realmente?
O que esses exemplos nos dizem é que há uma demanda
por rotatividade, que há um imperativo por novidade e que existe um
funcionamento ordenado pela produtividade. Como uma educação que se pretende
libertadora será possível se não romper com esse funcionamento operante?
O desafio que temos é conseguir que o teatro cumpra
sua vocação de ENCONTRO com o outro. Na realidade de quem vive
na maior cidade da América Latina e centro econômico do Brasil, atesto que há
uma gigantesca produção teatral e dezenas de centros de ensino, se compararmos
com outras cidades do país. Mas, voltando a Viviane Mosé — que abriu essa
reflexão — e a bell hooks: é de mais peças de teatro que precisamos? De que
teatro estamos falando? É do teatro que precisamos ou do encontro que essa arte
nos possibilita: o encontro com o outro, consigo mesmo, com o mundo, com o não
imaginado, com o impossível?
Na música “Paciência”, do artista
pernambucano Lenine — que inspirou os subtítulos dessa reflexão —, somos
gentilmente suspensos da dinâmica acelerada de nossas existências sem tempo
para lembrarmos que a vida é tão rara.
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
A vida é tão rara
A vida é tão rara...
Mas quem quer saber?
PS: Este texto foi priduzio como parte da avaliação bimestral da disciplina Estudos sobre o ensino doteatro, ministrada pela ProfB Luana Freire.